Sobre Insegurança, rotina e TOC

A primeira vez que vi o Jorge, logo simpatizei com ele. Eu sabia que tinha sete anos, mas a camisa vermelha e branca que ele usava abotoada até o pescoço fazia com que ele parecesse ter mais que isso.  Um homenzinho, pensei! Eu sabia por alto do problema: Jorge tinha passado por um psiquiatra que havia dado a hipótese diagnóstica de Transtorno Obsessivo Compulsivo leve.  Por isso a sugestão dele foi a terapia comportamental antes de pensar em alguma medicação. Por isso, Jorge e a mãe estavam no meu consultório naquele dia.

Como de costume, conversei primeiro com a mãe, enquanto Jorge ficou brincando em outra sala com alguns joguinhos que temos.  Por razões óbvias ela parecia preocupada, mas desde o início se mostrou muito aberta ao diálogo e a de fato ouvir o que eu tinha a dizer. Comecei perguntando quais eram os comportamentos de Jorge que lhe chamavam a atenção.

— Você viu a camisa que ele está? Ele só usa essa para sair.  Todos os dias ele quer usar essa camisa. É uma luta para conseguir que ele vista uma camiseta ou mesmo uma outra camisa! Eu tenho que lavá-la toda a semana! Ainda bem que ele aceita o uniforme da escola!

— Sem brigas quanto ao uniforme então?

— Sem brigas!  O problema é quando saímos para algum outro lugar. Mesmo quando está calor ele fica usando essa camisa. Eu falo, falo, falo e ele se nega a colocar algo mais confortável.  Quer a camisa!

— Entendo. Algo mais?

— Sim… A rotina para  sair de casa.

— O que ele faz?

— Sempre a mesma coisa, na mesma ordem. Quando ele vai tomar banho eu ligo o chuveiro na temperatura correta e fecho a porta. Ele sempre demora uns dois minutos antes de entrar no box. Nunca vai imediatamente. Depois, eu entro no banheiro e deixo a roupa dele em cima da pia para que ele vista assim que sair do chuveiro. Mas em vez de se vestir lá dentro, ele sai, de toalha, estende cada peça de roupa em cima da cama dele e só então se veste.

—  E nessas roupas está a camisa?

—  Sim, quando saímos para algum lugar. No dia a dia está o uniforme da escola.

—  E depois?

— Depois ele escova os dentes e penteia o cabelo, sempre nessa ordem, e só então saímos.

— Ele tem um número de vezes determinado para passar o pente ou escovar os dentes?

— Não. Só a ordem.

— Vocês se atrasam por causa disso?

— Não. Hoje em dia não mais. Eu já sei que isso vai acontecer, então começo a fazer tudo antes para a gente sair na hora.

—  E o que o psiquiatra disse?

— Que é um Transtorno Obsessivo Compulsivo e que precisamos cortar esse comportamento, senão isso vai aumentar.

—  E o que acontece quando vocês tentam impedir o Jorge de fazer isso ou quando tentam trocar essa ordem?

—  Ele fica perdido. Demora… Coloca a roupa do contrário, esquece um pé da meia… Enfim! Parece que ele paralisa! No fim acabo deixando ele fazer o que ele faz porque não sei mais se vale a pena toda essa briga e sofrimento… Percebo que quando eu deixo ele fazer o que ele faz, temos menos desgaste emocional e ele consegue ficar tranquilo depois.

— Entendi. Bom… É importante que a gente entenda os porquês de ele fazer isso. Pode ser que ele ache que se não seguir aquela sequência de ações algo ruim acontecerá. Ou seja, pode ser que ele esteja associando esses comportamentos com pensamentos ruins. Mas eu não acho que é isso que está acontecendo. Vamos fazer o seguinte… Quero atendê-lo por algumas sessões e depois voltamos a conversar. Pode ser que eu te indique algum tratamento específico para ser feito ou que eu apenas te oriente, ok?

Naquele mesmo dia, eu e Jorge tivemos a primeira sessão. Como era de se esperar, ele estava tímido e parecia não querer muita conversa. No fim, consegui convencê-lo a brincar com um joguinho chamado Quebra-Gelo, no qual você dá marteladas em bloquinhos que simulam uma geleira e tenta evitar que o urso caia dessa superfície. O jogo em si não me revelaria muito sobre os problemas do Jorge, mas figuradamente também quebraria o gelo dessa nossa nova relação. Mesmo sem esperar muito do ponto de vista terapêutico, essa brincadeira já me revelou algumas coisas…  Em determinado momento do jogo, Jorge tinha que bater em um pedaço que talvez fizesse o urso cair, mas  as batidas foram tão fracas que o gelo nem se mexia.

— Opa! Isso! Mais forte! – incentivei.

— Mas ele vai cair!

— Sim! Talvez! Mas faz parte! Qualquer coisa a gente começa de novo, não tem problema nenhum! A diversão tá aí!

Apesar da minha insistência, Jorge estava angustiado e com um nítido desconforto.

— Ok! Vamos fazer isso juntos – disse, segurando as mãos dele para pegarmos o martelo de brinquedo. Percebi que ele fechou os olhos na hora em que batemos no gelo e senti o alívio dele ao notar que nada havia acontecido. O “bloquinho de gelo” não estava mais lá, mas o urso permanecia de pé.

— Isso! Muito bem! Vamos bater em outro gelo?

— Não. Já tá bom!

Ali dava para saber para onde tínhamos que caminhar e como eu poderia ajudar esse menino e a mãe dele.

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Na semana seguinte, Jorge e a mãe voltaram ao consultório. Ele estava de novo com a camisa vermelha e branca. Pedi uns minutinhos à mãe antes de entrar na sala com o menino. Eu e ela nos sentamos na sala e eu expliquei  o que já tinha percebido.

— Nós temos dois jeitos de olhar e tratar essas questões que o Jorge apresenta. Se enxergamos que esses comportamentos dele são rituais atrelados a pensamentos obsessivos, o tratamento vai ser um. Provavelmente vamos usar técnicas comportamentais e as orientações gerais serão no sentido de extinguir esses comportamentos. Ou seja, não deixar ele fazer o que ele faz.

— E o outro jeito?

— O outro jeito, é o jeito que eu quero fazer. Quero deixar que ele siga fazendo o que faz.

—  Como é?!

— Eu enxergo esses comportamentos do Jorge como um sintoma de insegurança e não de transtorno obsessivo compulsivo. Muitas vezes as crianças desenvolvem esses hábitos como uma forma de se sentirem seguras. Isso lhes dá uma sensação de limites, contornos e de estarem no controle. Por isso, sugiro que nós deixemos que ele continue fazendo o que está fazendo. Não vamos cortar esses comportamentos, pelo menos por enquanto.

— Mas desse jeito eles não vão aumentar ou piorar?

—  Como eu falei, não enxergo isso como um transtorno. Inclusive, acho que extinguir esses comportamentos vai fazer com que o Jorge desenvolva outros. Por exemplo: a gente proíbe ele de usar a camisa que ele gosta, mas aí ele passa a querer dormir com a roupa x, ou ligar o ventilador sempre que for dormir… Enfim! O que eu acredito é que o Jorge desenvolveu esses comportamentos como uma forma de se sentir seguro. Pelo o que eu vi e pelo o que você me conta, ele não acha que a camisa ou a sequência do banho são capazes de evitar alguma situação ruim ou que algo bom vai acontecer quando ele faz o que faz. O que eu vejo é que sim, ele se sente mais seguro quando tem essa rotina. Fazer essa sequência dá uma sensação de organização. Ele se sente mais preparado para o que vem pela frente. Isso não é TOC.

— Entendi…

— Então eu te proponho o seguinte… Se o seu filho está precisando dessa segurança nesse momento, vamos dar. Vamos deixar ele com a rotina dele quando vocês forem sair.  É uma forma de ele se organizar internamente para o que vem pela frente. Vamos focar o nosso trabalho em outro objetivo! Vamos procurar saber nas nossas sessões de onde vem a insegurança dele e como podemos diminuí-la. Enquanto isso, segue a camisa e segue o banho desse jeito!

Como disse, essa mãe sempre se mostrou muito aberta ao diálogo e isso ajudou demais no tratamento. Fomos com o segundo jeito, o jeito que eu queria!

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Felizmente os resultados rapidamente foram aparecendo.  Aos poucos os comportamentos teoricamente obsessivos do Jorge foram diminuindo, até não acontecerem mais.

Friamente falando, não cortamos os “rituais”, mas não era isso que eu estava buscando e sim um bem-estar maior para todos. Uma vida mais saudável e agradável! O que eu tenho falado para os pais dos meus pacientes é: enquanto seu filho está se sentindo inseguro, dê segurança pra ele! Não deixem buracos em etapas que ele não conseguiu passar ainda. Do contrário, esses buracos, essa insegurança, essa ansiedade e outras sensações ruins vão começar a aparecer em outras etapas do desenvolvimento, gerando problemas maiores e mais sérios no futuro. Ter alguns comportamentos repetitivos como rotina, como forma de organização, sem um prejuízo grande e funcional, não é uma patologia. A bem da verdade, todos nós temos nossas formas de nos sentir seguros e tranquilos não é mesmo?